domingo, 7 de abril de 2019

WONG SHUN LEUNG E BRUCE LEE - ENCONTRO, RIVALIDADE E DISCUSSÕES SOBRE KUNG FU


Wong Shun Leung foi considerado um dos alunos mais avançados do mestre Ip Man e era conhecido na sua mocidade como o “rei das mãos falantes” (The King of Talking Hands) por ter participado de diversas disputas em ruas e terraços nos prédios de Hong Kong contra lutadores de outras escolas de Kung Fu e por supostamente não ter perdido nenhuma.  Ele já era um respeitado  jovem instrutor entre os discípulos quando o adolescente Bruce Lee veio trazido pelo pai para ser apresentado ao mestre de Wing Chun Ip Man em busca de uma arte marcial que disciplinasse o filho e controlasse o seu ímpeto rebelde. Ip Man aceitou o jovem Lee Jun Fan (Bruce Lee) como discípulo em consideração à amizade pelo seu pai, o famoso ator de ópera chinesa, Lee Hoi Chuen; mas, na verdade, os conhecimentos práticos de luta foram repassados ao jovem Lee por Wong Shun Leung. Bruce treinou Wing Chun Kung Fu sob a supervisão de Ip Man e teve a instrução particular de Wong Shun Leung por quatros anos, até partir para os Estados Unidos, em 1959.

O jovem Bruce Lee foi aceito como discípulo de Ip Man...
Mas Lee tomaria aulas particulares com um dos discípulos mais avançados,
Wong Shun Leung.



O "rei das mãos falantes", Wong Shun Leung.
Parte do ensinamento que pode assimilar e que levou como bagagem para os Estados Unidos foi repassado por Wong, e Bruce reconheceu isso anos mais tarde, pouco antes de morrer. É bom frisar que Bruce Lee não teve tempo de aprender todas as formas e técnicas da escola Ip Man de Wing Chun, mas a boa base que absorveu foi o suficiente para que na América ele iniciasse seu sonho de se tornar o melhor artista marcial de todos os tempos mesclando técnicas efetivas das artes marciais orientais e ocidentais, não importando sua origem ou filosofia, mas apenas a sua efetividade em um combate real sem regras. Mas isso já é outra história.
Baseado nos escritos de Wong Shun Leung, que se tornou livro posteriormente à morte de Bruce Lee em 1973, relato o conteúdo da conversa ocorrida no último encontro entre Bruce Lee e mestre Wong Shun Leung, pouco antes do Pequeno Dragão falecer. O que é dito aqui foi publicado após a morte de Bruce Lee, as únicas testemunhas que presenciaram o que foi discutido na ocasião foram somente Lee e Wong, portanto trata-se da versão de apenas um dos lados, a de Wong Shun Leung. Mesmo porque Bruce faleceu em julho de 1973, poucos meses após esse encontro entre os dois e, Wong, apesar de ter descrito e autorizado a publicação do conteúdo dessa conversa, já não pode ser mais contestado, pois já é falecido também. Portanto o que nos resta é confiar nas memórias escritas do mestre Wong, fazendo uma análise coerente do texto, apesar de estar evidente que em alguns momentos Wong Shun Leung procurasse desmistificar e, de certa forma, depreciar a imagem do Rei do Kung Fu, no meu entender.

O encontro entre os dois mestres - Segundo as palavras de Wong Shun Leung: Bruce estava muito obcecado em manter a sua forma física. Eu não digo isso sem algum fundamento. Bruce tinha chegado a uma posição em que só podia olhar para cima.  Ele não podia recuar porque temia ser superado por outro artista marcial. Foi esse tipo de pensamento que o pressionou e eu (Wong Shun Leung) lamentei por isso.
Cerca de dois meses antes dele morrer (por volta de maio de 1973), ele me telefonou dizendo que queria ir à minha academia para tirar algumas fotos. Era um dia de domingo em Hong Kong. Mas minha família tinha planos para sair num passeio e eu tive que negar o seu pedido. Mais tarde me arrependeria por ter recusado sua solicitação. Nós éramos velhos conhecidos. Eu deveria tê-lo deixado tirar algumas fotos, mas agora não há mais como nos vermos. Embora não tivesse concordado com sua visita naquele momento, prometi  visitá-lo posteriormente em sua casa (na 41 Cumberland Road, em Kowloon Tong).

A casa de Bruce em Kowloon Tong, onde se deu o encontro com Wong.
Lá nós falamos sobre nossas experiências e idéias sobre as artes marciais e as comparamos. Logo depois, ele deixaria Hong Kong para resolver alguns compromissos cinematográficos (provavelmente relacionados com a divulgação e promoção de Operação Dragão). Quando ele retornou, ele me ligou me convidando para participar de alguns testes de tela para O Jogo da Morte (The Game of Death). Eu não concordei  em participar do filme, mas fui participar de um teste de tela para agradá-lo. Eu levei um aluno chamado Wan, junto. A luz do estúdio era muito mais forte do que na casa de Bruce. Na criação da cena, por um momento, nossos olhos se cruzaram e percebi  em seu olhar algo desconfortável e muito familiar para mim.

Bruce desfilava com sua câmara no set de Enter the Dragon.
No intervalo dos testes, ele pendurou sua câmara caríssima no pescoço e andava para lá e para cá com orgulho, como se procurasse exibir sua aparência máscula. O estúdio estava abafado. No intervalo saí para descansar um pouco. Mas o que tinha acabado de perceber nos olhos de Bruce tinha vindo à minha mente. Por que eu me senti familiarizado com aquilo? Onde teria visto tal fenômeno? Finalmente me veio a resposta. Eu tinha percebido o mesmo fenômeno meses antes de minha tia falecer.  Eu era ainda muito pequeno, mas por minha família ter muitos médicos, eu tinha aprendido alguns conhecimentos e aprendido a observar alguns fenômenos fisiológicos.  Percebi que o preto e o branco dos olhos de Bruce não estavam “vivos”.
Enquanto eu divagava sobre isso, Bruce saiu e veio até mim. Eu imediatamente perguntei: Você se sente cansado? Eu vejo que a cor dos seus olhos está diferente. Foi porque você morou em terras estrangeiras por um longo tempo?
“Não, eu não vejo nenhuma diferença”, respondeu Bruce.
Eu concluí que talvez fosse porque ele estava trabalhando demais, então eu o aconselhei a descansar mais, pois mesmo que o homem pudesse trabalhar como um máquina, ele acabaria por quebrar, se não tivesse nenhum descanso.

Wong Shun Leung e discípulo em teste para filmagens.

Lee, Wong  e seu discípulo, no set de Operação Dragão, em 1973.
Ele já tinha acabado de fazer Operação Dragão – “Enter the Dragon – 1973” (*1), se você viu o filme, você poderá concordar com a minha observação.  Neste filme, seus olhos estão sem graça e sombrios. Seu olhar neste filme é bem diferente de “O Dragão Chinês” (The Big Boss - 1971). Eu realmente esperava que o olhar sem brilho em seus olhos fosse o resultado de excesso de trabalho, mas eu estava apenas tentando entender isso. Eu não consegui  apagar aquela sensação  ruim. Concluindo que a situação dele poderia piorar, não quis comentar mais nada sobre isso.

(*1) As filmagens de Operação Dragão foram concluídas em março de 1973. Nos meses seguintes viriam os processos de montagem e dublagem.

(Retornando à visita feita na sua casa) cerca de dois meses antes de Bruce Lee morrer (por volta do mês de maio de 1973), discutimos e comparamos os resultados de nossas pesquisas sobre o Kung Fu, enquanto nossas esposas conversavam no lado de fora.
Comparações e competição - Inicialmente, Bruce queria testar o poder dos nossos socos. Ele (também) queria saber a minha idade (talvez Bruce quisesse testar a condição física de Wong que era cerca de 10 anos mais velho do que ele, que estava com 32 anos). Ele testou uma vez e depois tornou a repetir o procedimento mais uma vez (Wong não descreveu como foram realizados tais testes) . Ele ainda era poderoso, mas não tão poderoso  como alguns anos atrás. Ele estava mais preparado antes.  (A mudança) Pode ter ocorrido porque antes ele tinha uma vida mais disciplinada, não tinha tantos compromissos e era mais jovem.  As coisas eram diferentes agora, ele era famoso e mudanças ocorreram em diversos aspectos de sua vida. Além disso ele tinha um nível de vida mais saudável. Quando um atleta não tem prática e descanso suficientes e passa a depender  de vitaminas para sustentá-lo, os resultados finalmente, não serão bons. Bruce  viveu esse tipo de vida por um longo tempo (de 1970, a partir de sua lesão nas costas, até 1973, já em Hong Kong  e após o término das filmagens de Operação Dragão). Embora a máquina eletrônica, o aparelho elétrico de EMS (2*) pudesse ajudá-lo de alguma forma, seus fardos mentais e físicos eram enormes.

À esquerda, Wong Shun Leung ao lado do Bruce Le (clone de Bruce Lee), que simula usar o
aparelho de estimulação muscular elétrica (EMS) por volta de 1976. À direita, Jason Scott Lee
no filme "Dragão - A História de Bruce Lee " (1993), usando outra versão do mesmo aparelho.
(2*) Estas suposições de Wong foram feitas certamente algum tempo após a morte de Lee, quando começaram a surgir revelações pessoais sobre seu modo de vida e hábitos “secretos” até então desconhecidos pelo público em geral. Wong não poderia questionar se seus hábitos ou rotinas eram saudáveis ou não, antes que a imprensa marrom de Hong Kong começasse com as especulações para vender notícias após a misteriosa morte de Lee. Assim, Wong não poderia concluir certas coisas quando daquele encontro em 1973. Lee e Wong dificilmente se encontravam para trocar confidências. Confiram também a matéria neste blog: Bruce Lee, O Uso do EMS (Estimulador Muscular Elétrico) e outros Experimentos Científicos.

Após o teste de poder com  nossos socos, comparamos os nossos chutes. Nesta comparação, é claro, tínhamos muitas coisas em comum. No entanto, ainda tivemos algum desacordo sobre certos pontos. Eu senti que ele não era tão bom quanto antes (3*).  Após a comparação de chutes, ainda não tínhamos tocado na questão principal. Ele então propôs  descer as escadas para irmos visitar sua sala de treinamento. (Ele dispunha de vários aparelhos para trabalhar a musculatura de braços e pernas) O equipamento era muito moderno.

(3*) Em que sentido se refere Wong? Ele se referia à velocidade, potência ou a técnica dos chutes? O que Bruce Lee acharia desta declaração do velho amigo, se estivesse vivo na época? Considerando que Bruce estava em melhor forma em 1971 quando das filmagens de O Dragão Chinês, ele teria perdido tanto poder em pouco mais de 2 anos? E durante esse período ele teria negligenciado de tal forma seus treinamentos ao ponto de cair tão notavelmente nos aspectos físico e técnico? Não creio, e pelo nível cada vez mais criativo e crescente nos filmes subsequentes, isso não me parecia evidente, ao contrário.

Nós nos encaminhamos ao jardim de sua casa (numa área reservada para seu treinamento) onde havia instalado uma puching ball (adaptado) para treinar socos. Era menor que uma bola de futebol americano e uma de suas extremidades estava amarrada a uma mola (presa ao teto) enquanto a outra extremidade estava presa a um fio de nylon conectado ao chão. Quando a puching ball era atingida, girava rapidamente e proporcionalmente à força e velocidade do soco.

Bruce golpeando o saco teto-chão, provavelmente o mesmo que Wong
experimentou na casa de Bruce Lee em Hong Kong.

Bruce treinando no saco teto-chão no final dos anos de 1960 nos EUA,
O aparelho era uma adaptação do puching ball do boxe.
Depois que ele terminou com sua sequência de socos na puching ball, ele me pediu para tentar. Mesmo que eu não tenha atingido com a mesma precisão que a dele, a diferença entre as nossas tentativas não foi muito grande. E como esse dispositivo foi instalado por ele, certamente ele estaria mais familiarizado com o equipamento e acertaria com mais precisão. Essa foi a minha primeira vez que golpei uma puching ball e por isso julguei a minha performance como muita boa. Na verdade, isso estava além de sua expectativa (especula Wong). Meu desempenho  tinha quebrado seu sonho de ser um “super-homem”. Na verdade Bruce achava que eu não acertaria a bola. (4*)

(4*) Embora Wong Shun Leung entendesse que Bruce Lee quisesse testar o seu real poder nos golpes, o próprio Wong não se furta de comparar as performances de ambos, parecendo querer diminuir a lenda em torno do poder fantástico de Bruce Lee e ainda procurando se nivelar com ele, ou até mesmo superá-lo, de uma forma sutil. Wong ainda afirma que Bruce Lee se considerava num patamar acima dos outros artistas marciais, inclusive do próprio Wong Shun Leung, que orgulhoso concluiu que naquele teste com o puching ball ele teria desmoralizado Bruce Lee com seu desempenho surpreendente. Wong teria treinado boxe ocidental na sua mocidade, assim como Bruce Lee; sendo assim, a puching ball não era tão novidade assim. Na verdade o equipamento que foi usado era um “saco teto-chão” adaptado, uma variação do puching ball.

Prossegue Wong:  Após o teste, ele entendeu que a diferença entre os dois era muito pequena. E u já tinha dito a ele: “Se um homem tem o mesmo tamanho e poder físico que o seu, mesmo que ele não conheça Kung Fu, ele ainda poderá lutar de igual  para igual com você. Você poderá ganhar porque conhece técnicas de luta que ele desconhece. Se você não se considera um super-homem, você terá uma vida melhor e significativa, caso contrário, você se sentirá frio e solitário.”
Ele deveria ter se lembrado das minhas palavras e com dois dedos descansando entre as sobrancelhas, ele meditou por um tempo. Então ele respirou fundo e disse: “Leung eu sou diferente agora. Tenho  minha vida acobertada por seguro e estou preparado para qualquer acidente. Minha família não precisa se preocupar com suas vidas futuras. Eu não tenho nenhuma preocupação também. Mas se alguém me perturbar, ele deve tomar cuidado. Não tenho medo da morte, posso matar rapidamente qualquer um que me atacar. “
Bruce parecia ter parecia ter muitos cuidados e preocupações (apesar de ter tido o contrário?!?). Eu só podia acalmá-lo e disse: “Você não deveria pensar dessa maneira. Ser pai é mais do que apenas deixar algum dinheiro para os filhos. Se isso estivesse correto, então todo milionário seria um pai modelo.  Eu acho que, se você tiver tempo, deve tentar se ocupar mais com sua esposa e filhos. Não gaste todo o seu tempo fazendo dinheiro. Ele olhou para mim, balançou a cabeça e sorriu.

Desafios constantes - Bruce percebeu que eu tinha sido crítico com ele em quase tudo, mas ainda assim ele não quis discutir comigo. Então ele mudou o assunto da conversa. Ele me perguntou se havia algum seguidor de Wing Chun Kung Fu trabalhando no cinema de Hong Kong. Então eu disse a ele o que sabia sobre algum artista (não identificado nesse relato). Ele estava sempre interessado em saber sobre qualquer nova  estrela dos filmes de artes marciais. Na verdade, ninguém poderia se comparar à ele nesse momento. Enquanto golpeava a puching ball, ele disse: “Leung,   me deixe contar sobre dois eventos que ocorreram comigo. Um dia, no set de filmagens, conheci um extra ou figurante. Percebi seu orgulho quando ele me disse: ‘Se eu não tenho Kung Fu de verdade, não acho que você o tem. Você é um estúpido!’ Então ele me desafiou a lutar. Eu estava com muita raiva. Pedi  a ele para descer (do paredão) para lutarmos e ele perguntou: ‘Como poderemos nos golpear?’ Eu respondi: ‘Apenas lute, é assim que vamos jogar’. Com um grito, chutei seu baixo abdômen usando um pouco da minha energia, mas ele não soube se defender. Ele caiu de encontro ao quadro de marcação do set, mas levantou e correu em minha direção. Eu chutei novamente, mas desta vez no seu peito. Ele se machucou e parecia estar mal e não emitiu um som sequer. Em seguida outros extras vieram para ajudá-lo, mas ele assumiu a culpa e se desculpou. Vendo o seu estado, não quis feri-lo novamente e o deixei ir. (*5) 

Registro da luta entre Bruce Lee e um figurante que o desafiou
durante as filmagens de Enter the Dragon.
Depois de alguns dias, enquanto eu corria pela Waterloo Hill Road, passei por um canteiro de obras. Desta  vez, um dos operários da construção gritou me desafiando a lutar com ele. Então pulei por cima de uma cerca de madeira e fiquei diante deles e perguntei: ‘Quem quer lutar?’ No entanto, ninguém respondeu, então eu os repreendi.”

No filme "Bruce Lee - The Man, The Mith" (1976) com outro clone, Bruce Li, a versão
do incidente com os operários foi diferente do relato de Bruce Lee.
Wong continua: Daí  Bruce pronunciou algumas gírias e ouvindo suas palavras, eu ri. Então eu disse: “certamente, você não lutou.”
Ele disse: “No final, eles inclinaram suas cabeças e pediram desculpas por suas atitudes. Eles disseram que estavam apenas brincando comigo. Percebendo isso, não me importei com eles e continuei fazendo minha corrida.”

(*5) Esse incidente com o extra no set de filmagens a que Bruce Lee se referiu, pode ser o que foi testemunhado e narrado pelo lutador e ator Bob Wall (O’Hara em Enter the Dragon). Há várias versões sobre essa luta.  Mas todas atestam que Bruce arrasa com o desafiante que acaba por reconhecer sua superioridade e lhe pede desculpas.  No caso do operário no canteiro de obras, esse evento foi  encenado num filme biográfico sobre Lee, “Bruce Lee – The Man, The Mith” (1976), com o ator Bruce Li, um dos vários clones de Lee. Mas o filme não foi fiel ao relato de Bruce Lee, nesta versão Bruce Lee estava correndo na via quando é parado por fãs que trabalhavam numa obra. E enquanto Bruce entretinha os operários,  surge um grupo de militares (supostamente ingleses) que também faziam cooper e provocam a Bruce e seus fãs. Bruce então teve que ensinar boas maneiras ao líder do grupo do seu jeito.

Ao me contar esses dois eventos, o objetivo de Bruce era afirmar que ele lutaria com qualquer um a qualquer momento. Ele era como uma “fera ferida”. Ele não precisava se preocupar com nenhuma outra coisa. Se um homem famoso e rico fosse normal, ele não se comportaria dessa maneira, a menos que tivesse algum segredo em oculto (especula Wong). Ele parecia saber que morreria jovem. E  não importava o quanto ele fingisse ou tentasse encobrir, seus pensamentos  se revelariam nas suas palavras e atitudes. Na frente de seu amigo íntimo, era muito mais difícil esconder o seu verdadeiro eu.

Entre as pessoas no mundo do cinema, a vida de Bruce poderia parecer disciplinada, no entanto, o modo e lugar para se morrer não pode ser arranjado de antemão e de acordo com a vontade da pessoa. Muitas pessoas sugeriram diversas razões para sua morte que mancharam o seu bom nome. De fato, não podemos ser muitos rigorosos nisso, se formos extremamente críticos, até Confúcio não poderá se sustentar adequadamente.

Concorrência no cinema - (Depois de testarem os socos no Puching Ball) Continua Wong Shun Leung:  Subimos para o quarto de Bruce e nos sentamos. Bruce começou a comentar sobre algumas atuações  e habilidades demonstradas em alguns filmes de artes marciais realizados. Ele pediu minha opinião também, mas raramente eu assistia filmes de artes marciais. Portanto eu não estava qualificado para emitir alguma opinião. Ele trabalhou nesse campo por muitos anos, assim ele deveria estar muito mais familiarizado com essas coisas do que eu. Seus comentários foram muitos objetivos e precisos e citou artistas como Cheng Sing, Jhoon Rhee, Jimmy Wang Yu, Wang Gia Ta (?) e Tan Tao Liang.

Astros que surgiriam na era Bruce Lee: Chen Sing, Jhoon Rhee, Jimmy  Wang Yu e Tan Tao Liang.
Rivais, mas nem tanto assim...
Além de atuar, Bruce concentrou-se principalmente em seu Kung Fu (Jeet Kune Do). Ele  também me explicou o quanto foi meticuloso para realizar (as cenas de lutas em) seus filmes. Algumas cenas de ação eram repetidas inúmeras  vezes, antes que fosse aceitável (para ele). Assim, a popularidade de seus filmes não foi por acaso. Quando ele terminou seus comentários sobre as estrelas (dos filmes de Hong Kong), ele se virou para falar sobre sua técnica exclusiva. Ele me disse: “Leung, meus pés podem chutar em qualquer ângulo.”
Ele imediatamente se levantou e ilustrou sua afirmação. Bruce pegou o seu escudo aparador de chutes para eu ver. Ele o tinha usado numa performance na TV (em Hong Kong).
Ele disse: “Tente isso. (O escudo) É muito útil. Vamos ver o quanto poderoso você é agora.
Eu respondi: “O poder do homem tem limites. Meu corpo não é velho demais, mas não é mais possível  obter um grande progresso.”
Eu entendi sua intenção. Ele queria testar o poder do meus chutes. Pouco antes de começarmos, ele disse: “Concordo com esse pensamento. Quando o poder atinge um certo limite, é difícil progredir além. Ele também é deficiente em relação à idade. Eu tenho ainda muitos equipamentos de treinamento auxiliar (ele se referia à máquina EMS para estimulação muscular elétrica), eu posso ainda posso experimentar algumas pequenas descobertas. Minha esperança é que, quando eu tiver 60 anos, nãos serei insultado impunemente por outro homem de   60 anos. (*6) Segue Wong:  Embora ele  tivesse essa esperança. Ele nunca foi capaz de realizar tal desejo. Todos os seus amigos e fãs sentem muito por isso.

(*6) Uma pequena contradição aqui, poucos antes durante a conversa, Bruce insinuava crer que não viveria por muito mais tempo;  em seguida ele confessa sua pretensão de estar preparado física e tecnicamente aos 60 anos, caso surja algum contratempo.

Testando o chute e o soco do Dragão - Então ele me pediu para segurar o escudo para que ele pudesse fazer uma demonstração. Ele deu um passo para trás, avançou e soltou um chute lateral. Eu não tentei  resisti  ao golpe me firmando. Quando sua perna me alcançou, recuei para diminuir o impacto. Eu fiz isso porque não estávamos competindo. Eu só podia me defender.  Eu não precisa resistir ao seu golpe. Ele tentou novamente e chutou com o pé esquerdo desta vez. Eu voltei a recuar para amenizar o impacto do chute. Quando seu terceiro chute veio contra mim, não consegui mais recuar, pois já estava encostado na parede. Então me esquivei e desviei sua perna.

O famoso chute lateral de Bruce Lee exibido em "O Voo do Dragão" (1972).
O escudo não é suficiente para absorver o impacto do golpe.
Bruce Lee golpeia o escudo protetor seguro por Bob Baker
em exibição para TV em Hong Kong, por volta de 1972.
Baker passa por cima da cadeira e rola ao chão.
Bruce me perguntou: “Leung, o que acha do meu chute? De fato posso chutar a qualquer momento e de qualquer ângulo. Observe meus músculos.” Bruce me mostrou os seus músculos do baixo-ventre. Eles eram firmes. Isso provou que ele passou um bom tempo se condicionando fisicamente.
Eu disse a ele: “Sem dúvida, sua velocidade e poder de impacto são bons. No passado, você treinou duro. Os resultados que você tem agora não são facilmente obtidos. O resultado é proporcional ao trabalho. É uma regra.”
Em seguida, Bruce me pediu para testar o poder e a velocidade de seu soco. Para mostrar a rapidez de seu soco, ele me pediu para tentar bloqueá-lo. Eu tinha visto como ele fez isso (em demonstração) na TV. Ele descansava o punho no peito e depois o lançava. A reação automática a isso seria bloquear o seu punho. Portanto ele poderia voltar com o seu punho em menos tempo. Quando alguém se concentrava em pegar o seu punho, seria enganado ao tentar seguir o movimento de seu braço. Eu conhecia bem a psicologia de Bruce. Sua performance na TV foi sensata. (*7)

Bruce Lee demonstra sua velocidade de ataque contra o faixa-preta de Shorin Ryu karate,  
Shotokan Karate e Kempo, Victor Moore, na exibição em Long Beach em 1966. 
Wong questionava tais demonstrações. 
(*7) Wong Shun Leung talvez teria sido o primeiro a considerar essa demonstração de velocidade dos punhos de Bruce como um truque ilusório.  Alguns outros, depois de sua morte, começaram também a questionar tais  demonstrações. Mas Bruce não estava mais vivo para rebater. Talvez os mesmos quisessem que Bruce Lee os atingissem verdadeiramente com velocidade e impacto para eles perceberem se a sua velocidade e poder eram ou não reais.

Wong prossegue: Eu ri e disse: “Bruce! Você me trata como o seu público. Eu vi o seu desempenho na TV. Você é inteligente, mas não pense que eu sou idiota (Wong acabou de chamar o público de idiota).  Eu vi como você diminuiu sua velocidade  para acertar o peito do seu oponente para que ele pudesse bloquear o seu soco facilmente. Você então o elogiou e pediu-lhe para se preparar novamente. Na próxima investida, você fintou no seu abdômen, enganando seu adversário que esperava outro golpe no peito.  Claro que ele não acharia seu soco. Então você tocou em seu rosto com sua mão. Na verdade, você poderia tê-lo tocado várias vezes, porque ele ficou surpreso com o seu truque. Esse foi o fruto de seu estudo de psicologia.”
Bruce então retrucou: “Você acha que o meu Kung Fu é falso?”
Eu respondi: “Isso não é totalmente correto. Uma parte de seu Kung Fu é real, mas você não pode negar que parte dele é usado para performance.”

Na conversa, Wong praticamente rebatia todos os pontos de vista de Bruce Lee.
Nós descansamos por um tempo e eu disse a ele: “Se você poder quebrar uma chapa de ferro com seu soco e eu só posso quebrar uma pedra, é claro que tem mais força do que eu. No entanto, se eu te golpear, você acha que poderia suportar isso? Portanto, o poder é muito importante, mas quando você atinge um certo nível, a capacidade é mais importante.”
Bruce enfatizava a praticidade. Mas sua performance buscava por poder e beleza. Quando eu trouxe essa questão do poder ou aperfeiçoamento e capacidade, Bruce sorriu. Ele me perguntou: “Você já pensou em outras questões?”
“O que você quer dizer?”, perguntei.
Bruce respondeu: “ O que quero dizer é a questão da performance. Você não pode exibir sua capacidade. Mesmo que você tenha feito uma explicação longa e detalhada, o público ainda achará difícil entender seu significado. E eles também não vão acreditar. Além disso, eles não terão nenhum interesse em sua teoria. Mas quando você lhes mostrar seu poder, eles entenderão imediatamente. Eles vão sentir isso também. Essa é minha opinião sobre o desenvolvimento do poder e da capacidade!”
Pode haver alguma verdade em suas palavras. Para ele, em se tratando de um professor de boxe americano, a exposição de seu poder é inevitável. Ocidentais são práticos. No entanto, a capacidade do boxe não será compreendida em pouco tempo. Temos que ver as coisas de diferentes ângulos.
Meu julgamento sobre ele representa apenas o meu ponto de vista. Claramente negligenciei seu ambiente e ponto de vista. Sua família tem muito a ver com o show business. (*8) Ele naturalmente prestaria mais atenção ao elemento do desempenho ou performance. Por outro lado, em sua performance, ele procurou por beleza e poder. No entanto, no aspecto da capacidade, ele se desviara. (*9) Por exemplo, ele usou uma técnica irracional para atacar seu “oponente” que não era expert em Kung Fu (Wong refere-se a uma exibição). Porque ele tinha boa velocidade e estava preparado psicologicamente, seu oponente não pôde reagir adequadamente ao seu ataque. (Wong ainda insinua...) Gradualmente, esse tipo de ação pode ter se tornado um de seus hábitos.  Ele então poderia ter sido capturado pelo seu própria armadilha. Possivelmente ele deixou o razoável pelo irracional. É claro que em nossa conversa havíamos tocado nesse problema. Mas ele não concordou comigo sobre este ponto. Ele duvidou das minhas palavras.

(*8) O pai de Bruce era um famoso e querido ator de Ópera Chinesa tradicional em Hong Kong; o irmão caçula de Bruce, Robert, se tornou músico e cantor de pop rock na década de 1970; enquanto seu irmão mais velho, Peter, foi campeão de esgrima de Hong Kong. Ou seja, Bruce nasceu num ambiente em que a família respirava teatro, cinema, música e esporte;  sendo assim, não foi por acaso que ele se enveredou precocemente no cinema de Hong Kong, ainda menino. Sem esquecer que o próprio Lee foi campeão de dança Cha Cha Chá em parceria com seu irmão caçula Robert, em 1958. 

(*9) Bruce sabia separar as coisas perfeitamente, e quem conhece sua história sabe que ele distinguia claramente sua performance plástica e elegante nas lutas de seus filmes de seu despenho real numa luta de rua ou num combate sem regras. Wong Shun Leung parecia desconhecer isso na época desta conversa ocorrida em 1973.  Tanto é que Bruce Lee já tinha desenvolvido o conceito do Jeet Kune Do (Caminho do Punho Interceptor) no final da década de 1970. Visando uma resposta direta e eficiente dentro de um combate real. O próprio Lee declarava que os chutes altos eram de grande efeito visual nas telas, mas numa luta real não seria aconselhável aplicar tal técnica, preferindo os chutes baixos na canela, coxas  e testículos. Para ele, o principal num combate não seria a exibição de técnicas e sim terminar a luta o mais rápido possível usando todos os meios possíveis, desde que eficientes, rápidos e diretos. Até hoje muitos admiradores de Bruce Lee ainda não sabem separar o ator e grande “performer” dos filmes de artes marciais do lutador real e artista marcial inovador.

Ele (Lee) perguntou: “Então o que você vê? Em que se baseia?”
Respondi: “Baseio-me no que você acabou de dizer quando me pediu para bloquear seu punho. Quando você descansa o punho no peito, pode desferir um soco e se retrair mais rapidamente. Se você quiser subjugar seu inimigo é mais importante socar rápido do que retrair rapidamente. Na luta real, entretanto, seu oponente não pode parar seu soco, mas ele pode atacar seu corpo. Um estrategista ruim poderá evitará seu ataque, mas um bom tentará contra-atacar. Nós praticamos Kung Fu porque queremos ser capazes de lidar com oponentes que são mais fortes que nós. Nós não praticamos Kung Fu para enfrentar um adversário inferior.”(*10)

(*10) Aqui Wong Shun Leung parece estar falando com um lutador ingênuo e inexperiente, que não sabe distinguir o real do ilusório num combate. Wong afirma ter dito realmente essas palavras à Bruce Lee, que as teria escutado como se fosse uma grande novidade. Percebi aqui uma forma sutil de desmerecimento à imagem de Bruce Lee  que foi um grande artista marcial e que deveria ser sempre lembrado como tal.

Eu continuei: “Se você socar horizontalmente no peito de um homem que pesa 200 kg, não será fácil para você empurrá-lo para longe. Pelo contrário, seu soco irá dobrar seu corpo e o grande homem lançará seus braços em torno de você. Se você disser que seu soco é pesado, você está sendo subjetivo para definir seu soco. Existe algum boxeador profissional que não pese algumas centenas de libras? Eles não são capazes de suportar socos pesados? Mas se você bater em linha reta, mesmo que você  não possa empurrá-lo, a reação virá contra você. Você ainda pode manter seu oponente à distância e, se certamente seu oponente for fraco, essa ação ficará ainda mais bonita. Em seu filme você poderá fazer do seu próprio jeito, mas não deixe que isso se torne um mau hábito e, inconscientemente, considerar isso como um poderoso ataque. Você consegue perceber o que digo? (*11)
Bruce meditou por um tempo e disse: “Sim, mas você não precisa se preocupar com isso em combate. O combate exige uma abordagem geral.

Bruce Lee demonstrando o poder de impacto do "Soco de uma
Polegada" no Torneio Internacional de Karate de Long Beach, em 1966.

Não se trata de um empurrão como muitos pensam, é puro impacto e explosão.
Lee demonstrando o Soco de uma Polegada na TV em Hong Kong
por volta de 1971. Lee atravessa uma tábua de madeira com um soco sem

tomar impulso ou projetar seu corpo. Utiliza apenas o giro do quadril e a energia
necessária gerada por músculos específicos para projetar seu punho esmagador.


(*11) Talvez aqui, Wong se referisse ao famoso Soco de uma Polegada, usado por Bruce Lee nas demonstrações nos Torneios Internacionais de Karate em Long Beach (1964 e 1966) e posteriormente nas TVs de Hong Kong (1971 e 1972). Quem em sã consciência usaria tal técnica numa luta real? Só em demonstrações ou em filmes poderia funcionar perfeitamente. Bruce demonstrava o Soco de uma Polegada somente para ilustrar a importância do movimento dos quadris em conjunto com músculos específicos que poderiam gerar um tremendo impacto ao socar sem tomar distância ou impulso.

Eu respondi: “Eu não me oponho a esta afirmação. Mas agora que você atingiu um estado tão elevado, não acha que precisa descartar as coisas inúteis que estão com você? Em um combate, se sua fraqueza é exposta, pode se tornar mortal. (*12)

(*12) Aqui Wong aconselha a Lee descartar o que for inútil como se Lee não pensasse da mesma forma, já que ele começou a adaptar o Wing Chun ao boxe ocidental, ao wrestler, judô, e outros estilos de artes marciais orientais na segunda metade dos anos de 1960 nos EUA, criando o Jun Fan Gung Fu, que posteriormente seria conhecido como Jeet Kune Do.

Conversamos por cerca de quatro horas naquela tarde. Bruce me disse: “Na verdade eu tinha uma consulta hoje, mas como raramente nos encontramos e conversamos, a adiei.”

Ele disse a sua esposa Linda para informar-lhes que eles iriam no dia seguinte. Nossas esposas também estavam no quarto. Bruce então lhe disse (à Linda): “Por favor, leve a Senhora Wong para o andar de baixo, pois temos algo importante a discutir.”
Como nossos filhos ficaram muito tempo na sala e as mulheres não estavam interessadas na nossa discussão, era sensato deixá-las ir.

A rivalidade entre Lee e Wong parecia evidente...
O "rei do kung fu" vs. o "rei das mãos falantes" - Depois de uma pausa, Bruce disse: “Leung, embora tenhamos nossas diferenças, ainda temos muitas coisas em comum. Por exemplo, nós dois pensamos que o Kung Fu é apenas um tipo de esporte. Você gostaria de fazer alguns movimentos?”
Eu disse: “Se for apenas por interesse e pesquisa, tudo bem. Mas se for por competição. Eu não vou fazer isso.”
“O. K.”, respondeu Bruce.
Nós nos levantamos ao mesmo tempo. Bruce abaixou o antebraço (direito). O outro braço (esquerdo) foi colocado abaixo do maxilar inferior, perto do ombro, para proteção. Seu corpo virou ligeiramente para um lado. Sua perna (direita) na frente não se firmou totalmente no chão. Sua intenção  era usar seu antebraço (dianteiro) para fintar para que ele pudesse atacar com o braço esquerdo e suas pernas. Sua intenção era atacar com a perna (dianteira) primeiro. Se eu tentasse parar sua perna, ele seria capaz de atacar minha parte superior.  Nesse caso, eu seria forçado a assumir uma posição passiva e defensiva.
Eu tinha praticado com ele há muito tempo e já tinha algum entendimento sobre ele e não me apressei. Cheguei perto dele devagar e aguardei cuidadosamente o ataque súbito de sua parte.
Quando  eu estava a meio passo dele, rapidamente agi. Rapidamente me adiantei e usei o pé para chutar sua perna dianteira (direita). Sua resposta foi extremamente rápida. Ele retirou a perna dianteira e inverteu a base (postura) com a esquerda à frente.
Além disso, ele foi capaz de “perfurar” minha garganta (estocada com ponta de dedos) ao mesmo tempo. Ele agiu com experiência.
De fato, não tentei vencer com um único golpe. Quando acertei seu joelho, não achei que ele seria facilmente atingido. Eu só tentei forçá-lo a tomar uma posição defensiva.
Seu golpe foi rápido e poderoso. Eu tinha levantado a mão para bloquear e usei a outra mão para perfurar a sua garganta, mas meu peito ainda estava batido. Quando meus dedos estavam a meio centímetro de sua garganta, parei. Nós dois paramos. Bruce disse: “Você quer machucar meu joelho?  Você é inteligente. Felizmente, estou acostumado com esse truque. Está bem. Vamos tentar de novo.”
Desta vez, ele não estabeleceu uma postura firme. Quando nos aproximamos um do outro, ele começou a atacar com os punhos. Ele não usou a perna. O tipo de soco que ele usou foi o tipo que mencionei  anteriormente. O objetivo desse ataque era confundir seu inimigo. Então recuei um pouco usei minhas mãos para dissolver seu ataque.
Não queria atacar de maneira descuidada, pois, se o fizesse, ele seria capaz de fazer ataques pesados com os punhos e as pernas.  Eu dei alguns passos para trás. Quando ele usou seu punho direito por algum tempo eu me virei de lado e o ataquei da direita em direção ao seu peito. Ele havia estudado Wing Chun por algum tempo e estava familiarizado com essas táticas. Ele já sabia que eu atacaria dessa maneira. Então ele mudou para mão direita e a usou com um dedo para bater contra meu rosto. Para usar esse método, era preciso executar um arco. Este método não era característico do Wing Chun Kung Fu.
Eu tinha lançado meu punho esquerdo, quando ele se afastou, e claro, senti falta do alvo. Ele foi experiente e entendeu essa deficiência do Wing Chun, para então usar este método. No entanto, eu tinha o visto em sua demonstração, e então eu sabia que ele poderia usá-lo.  Imediatamente, mudei meu soco esquerdo para uma mão protetora e usei a mão direita para perfurar a sua garganta.
Apesar de não usarmos muito da nossa força, ambos fomos atingidos. Ele pulou para longe e disse: “Leung, na verdade eu bati em você primeiro. Você concorda?”
Eu sorri e respondi: “Não leva tão a sério. Quem primeiro atingiu o outro não é o mais importante. É a força do acerto que importa. Você está certo, sua mão tocou primeiro, mas minha mão protetora já tinha dissolvido muito do seu poder. Verdadeiramente, se você atacar com toda a sua força, eu posso não ser capaz de suportar isso, mas se o poder for muito reduzido, o ataque não será tão eficaz.  Por outro lado, minha mão alcançou sua garganta. Se realmente tivéssemos brigado, certamente você saberia quem teria se machucado mais. (*13)

(*13) Wong Shun Leung não dava o braço a torcer, mesmo. Em resumo, segundo seu ponto de vista, ele teria levado vantagem nessa simulação com Bruce Lee. O problema é que não temos a versão de Bruce Lee para compararmos.

Depois deste encontro, Bruce foi para os Estados Unidos. Uma dia antes de morrer (se assim foi, seria em 19 de julho de 1973), ele me telefonou.
O melhor amigo de Bruce Lee - Ele me disse: “Entre meus amigos, eu te respeito mais. Você é otimista. Você não leva fama e dinheiro a sério, sua vida é melhor que a minha.” (*14)

Quem seria o melhor amigo de Bruce Lee, Taky Kimura ou Wong Shun Leung?
(*14) Há controvérsias também nesta parte do relato de Wong. Não sabemos se realmente Bruce Lee disse precisamente estas palavras. Todos os estudiosos sobre Bruce Lee conhecem sua alta estima e consideração por aquele em que ele disse confiar sem temor, que era Taky Kimura, a quem Bruce sempre considerou como o seu mais fiel amigo, e a quem confiou os cuidados do Instituto Jun Fan Gung Fu de Seattle, e quem posteriormente foi o cuidador dos túmulos de Bruce e Brandon. Todos conhecem o desapego de Kimura pela fama e holofotes, preferindo permanecer fiel à memória de seu fiel sifu até hoje, aos 90 anos. Kimura nunca mencionou alguma coisa que desabonasse ou desmerecesse Bruce Lee, apesar de sabermos que Bruce não era perfeito e tinha os seus defeitos  como qualquer ser humano. Mas Kimura deixava que sua gratidão para com ele encobrisse todas as falhas de seu melhor amigo.


Prosseguindo com o relato de Wong: Eu então o acalmei e disse: “Eu só tento encontrar a felicidade da vida. Se trabalharmos duro por dinheiro e fama, no final descobriremos que estamos apenas nos torturando. Você pode viver como eu também. Viva corretamente. Não exceda seus limites. Então você descobrirá que sua vida  é melhor do que a vida dos demais.”
Mas agora estamos separados para sempre (finaliza Wong Shun Leung).

Considerações finais - Esse depoimento foi dado por Wong Shun Leung algum tempo após a morte de Bruce Lee. Bruce o procurou por algumas vezes para conversar e discutirem sobre Kung Fu e artes marciais em geral. Mas também o convidaria para participar do seu projeto para O Jogo da Morte (The Game of Death). Wong seria um dos lutadores do pagode de cinco andares que seu personagem (Hai Tien) enfrentaria. Wong representaria um expert de Wing Chun e Praying Mantis Kung Fu. Mas Wong recusou o convite, pois (ainda) não tinha interesse para atuar nas telas. Bruce o tinha como segunda alternativa para o personagem, pois sua expectativa era contar com a participação de Taky Kimura em O Jogo da Morte, apesar da timidez e insegurança deste.  Tudo indicava que seria mesmo Kimura, mas Deus não permitiu que Bruce levasse o seu projeto adiante.

O famigerado Bruce's Deadly Fingers (1976),
com o clone Bruce Le, longe de ser uma homenagem.

Wong que dizia não acompanhar películas de artes marciais, não resiste
à proposta e participa de filme que denigre a imagem de Bruce Lee. No registro
acima, Wong Shun Leung e o clone Bruce Le.
Pouco depois, Wong Shun Leung reviu seus conceitos contra filmes de artes marciais, para participar do filme “Bruce’s Deadly Fingers”, de 1976. Nele, Wong Shun Leung interpreta ele mesmo, como mestre instrutor de Bruce Lee que o procura para conselhos e instruções técnicas. A versão de Bruce Lee neste filme é caricatural,  beirando ao ridículo, interpretada por “Bruce Le”.  Nesta película, Wong o trata (Bruce Lee) como um menino mimado. Foi surpreendente Wong,  que se considerava (também) o melhor amigo de Bruce Lee, concordar em participar de um dos muitos filmes caça-niqueis exploradores da fama do Pequeno Dragão, no qual se destacava uma imagem cômica e negativa à memória do Rei do Kung Fu. Foi mais um de uma dezenas de filmes que realizaram com sósias caricaturais e clones de Bruce Lee no intuito de lucrar com a repercussão de sua morte prematura. Tais películas estavam longe de serem consideradas homenagens ou tributos ao Rei do Kung Fu.

Em Bruce's Deadly Fingers, Wong como mestre de "Bruce Lee", o
obriga a pegar uma xícara de porcelana que ele derrubou acidentalmente.

Bruce Le (clone) faz um performance caricatural de Bruce Lee no filme
Bruce's Deadly Fingers, com a participação de Wong Shun Leung.
Nele, a famosa cena em que o clone "Bruce Le" fura uma latinha
de refrigerante com um dedo.

No filme Bruce's Deadly Fingers, Wong demonstra sua superioridade
a um desastrado e imaturo Bruce Lee, ou melhor, Bruce Le.
Uma coisa é certa, sem o surgimento de Bruce Lee, talvez o mundo não conhecesse como hoje, o Kung Fu chinês;  assim como não falaríamos do estilo Wing Chun e do lendário Ip Man; e muito menos de Wong Shun Leung e os demais que pegaram carona em sua fama. Se eu fosse fazer uma lista dos que conviveram ou trabalharam com ele e que só por isso alavancaram suas “carreiras”, além dos seus seguidores e imitadores, ocuparia um espaço razoável nesta postagem.
 Sem esquecer que Bruce Lee foi um revolucionário que pregava a liberdade e o desapego às tradições das escolas ortodoxas de artes marciais que na sua maioria eram fechadas ao intercâmbio de novas ideias. Na verdade Bruce tinha à todos os estilos sem se deixar prender a nenhum.  Ele ainda questionava os mestres  acomodados, gordos e flácidos que diziam ter poderes sobrenaturais, o domínio do “Ki” e o conhecimento da suprema verdade. Bruce foi um pioneiro em defender a importância do preparo físico, o trabalho muscular especifico e a capacidade aeróbica para um artista marcial e ainda a importância de um lutador ser econômico e prático num combate, descartando as coisas inúteis e ilusórias para absorver apenas àquelas que fossem efetivas, diretas  e reais. 

Wong nos anos de 1980. Ele se dizia não adepto às dietas, já que não
se considerava um atleta ou performer. Sua forma física demonstrava

 que ele realmente não se preocupava com isso.

Bruce Lee em plena forma durante o Dragão Chinês, 1971. Ao contrário de Wong,
Bruce Lee valorizava a dieta, o condicionamento físico e técnico para uma artista marcial.
Para Lee, era essencial a manutenção de uma boa forma física e técnica.
Ele foi imitado, invejado, questionado, traído e odiado em vida e pós  morte, mas a imagem que perdura entre os seus verdadeiros fãs e amigos que muito o amam, é a do maior herói dos filmes de artes marciais de todos os tempos e do maior artista marcial que já existiu, conhecido como Lee Siu Lung ou Bruce Lee.

Walk On!
Por Eumário J. Teixeira