domingo, 2 de outubro de 2016

BRUCE LEE E A LESÃO NAS COSTAS QUE QUASE O DEIXOU PARALÍTICO


O final da década de 1960 foi difícil para Bruce Lee e sua família. Estavam com muitas dívidas, inclusive com a hipoteca de sua primeira casa que não conseguiam pagar. Apesar do sucesso da série de TV “The Green Hornet” (O Besouro Verde – 1966-67), de sua bela participação no seriado Ironside (1967) e de sua explosiva exibição no filme Marlowe (com James Garner, 1969), Hollywood não oferecia papéis de protagonista a Bruce Lee. E infelizmente, seus ganhos com as aulas particulares de Jeet Kune Do à atores renomados, não eram suficientes para cobrir suas despesas. Mas se não estava bom, o pior ainda estava por vir. Bruce percebia que era discriminado por Hollywood por ser de origem asiática e isto sinalizava de algum modo que, apesar de reconhecerem seu talento, não estavam dispostos a acolher uma estrela de traços orientais, ainda que um cidadão americano, no seu seleto elenco de celebridades.

Bruce Lee em Marlowe (1969), poucos meses antes da lesão nas costas
Nesta fase da vida, Bruce Lee cogitou seriamente em abrir uma rede de escolas de artes marciais, mas de qualquer forma precisaria de capital para investir nesse projeto audacioso.
Porém, no dia 13 de agosto de 1970 (para os supersticiosos, dia e mês de azar), precisamente numa quinta-feira, por volta das 10:30 da manhã, Bruce seguia sua rotina diária de treinamentos em sua casa. Quando resolve se exercitar com pesos, ele toma uma barra longa para realizar um procedimento específico chamado de “good morning”. Com as pernas levemente dobradas e a coluna esticada, ele se dobra à frente com a barra segura por trás do pescoço até ficar paralelo ao chão para então retornar à posição inicial. Por um descuido não habitual naquele dia, Bruce não teria feito um aquecimento preliminar para se exercitar com a barra ou não o teria feito corretamente. De repente ele sente uma forte estalo em sua parte inferior das costas, seu quarto nervo sacral teria sido seriamente lesionado com o esforço. Ele deixa a barra cair e dobra os joelhos vencido pela dor.

Bruce Lee e a barra com pesos similar a que lhe causou o terrível acidente que o imobilizou

O exercício com barra conhecido como "good morning" ou "bom dia" que lesionou Lee

Versão para os quadrinhos do dia 13 de agosto de 1970, quando da lesão de Bruce Lee
O que aconteceu em seguida e que é mais aceito pelos que buscam a verdade sobre o acidente, é que Bruce tentou remediar sua lesão com tratamentos térmicos e massagens por vários dias, mas como o incômodo era crescente e não passava, resolveu procurar um médico especialista. Nos próximos 6 meses ele pára com os treinos, passa a se movimentar com cuidado e leva a maior parte do seu tempo em repouso ou às vezes sentado na sala onde ostentava sua vasta biblioteca.

Versão para os quadrinhos sobre a convalescença de Bruce Lee no leito e sua reavaliação sobre as artes marciais
Nas versões românticas para as telonas, depois do acidente, ele teria sido confinado à imobilização total por alguns meses numa cama especialmente desenhada para ele. A imobilização favoreceria a recuperação do nervo lesionado levando-o ao estágio seguinte, a cadeira de rodas. Mas não foi bem assim.
Entretanto, tanto na fantasia quanto na realidade, após vários exames chegou-se à conclusão de que ele nunca mais poderia andar corretamente e que deveria descartar definitivamente a possibilidade de praticar certos movimentos característicos das artes  marciais, ou seja, nada de chutes ou saltos mirabolantes.
Imaginem o que passou pela mente de Lee quando ouviu esse terrível diagnóstico. Um jovem de 30 anos em plena forma física, cheio de projetos para sua vida e de repente o mundo desaba sobre ele.
Mas Bruce Lee tinha muita determinação e uma força mental incrível e, aceitando a necessidade do “repouso temporário” na prática das artes marciais, voltou sua energia para dar prosseguimento ao desenvolvimento de suas idéias à respeito da praticidade das artes de combate e a buscar o caminho que o levasse a se tornar um lutador mais eficiente, livre das ilusões sistemáticas.

Versão dos quadrinhos sobre a incrível recuperação de Bruce Lee
É bom lembrar que Bruce Lee já estava desenvolvendo conceitos inovadores para a arte do combate muito antes desse acidente com a barra. Desde o confronto com Wong Jack Man em 1964, ele já estava reavaliando seu ponto de vista sobre a eficiência do Wing Chun, considerando também os pontos positivos do boxe, wrestler, judô, savate, esgrima ocidental, etc. O processo natural foi que ele saltaria do Wing Chun para o Jun Fan Gung Fu e finalmente para o Jeet Kune Do.
Ele também recorreu à sua rica biblioteca que continha além de livros sobre as mais diversas artes marciais orientais e ocidentais, obras variadas de filosofia, psicologia, auto-ajuda e livros de cunho motivacional. Isso seria sua sustentação naquele momento crítico de sua vida, pois já que seu corpo estava momentaneamente inoperante, ele teria que manter sua mente e intelecto afiados. Assim, Lee recorreu à diversos autores como Buda, Alan Watts, Carl Rogers, Lao-Tse, Frederick Perls, Daisetz Suzuki e Jiddu Krishnamurti.

Bruce Lee em sua incrível biblioteca particular com mais de 2.500 títulos
Uma da frase motivacional que ele se apegou na época, foi “Walk On!” (siga em frente). Bruce Lee escreveu essa frase em diversos cartões e os espalhou por todos os cômodos da casa para que não se esquecesse de sua finalidade, que era de persistir até conseguir sua total recuperação. Aos poucos, graças ao trabalho de fisioterapia, passa a andar com mais confiança e a praticar exercícios de alongamentos e yoga com regularidade até conseguir soltar socos e chutes de forma moderada.

"Walk On" ou "siga em frente", a frase motivacional que conduziu Lee à reação
Após sua incrível recuperação, Bruce teria emoldurado aquela frase motivacional “Walk On”, colocando-a num lugar de destaque em sua casa, para que nunca mais se deixasse abater com qualquer situação. Suas anotações e desenhos resultantes de estudos feitos e extraídos dos diversos livros de artes marciais e de filosofias que leu durante sua convalescença, foram editados posteriormente depois de sua morte por Linda Lee, no que resultou na obra (ainda que não definitiva) “Tao do Jeet Kune Do”.

Depois do confronto com Wong Jack Man, Lee reviu seus conceitos sobre as artes marciais, o primeiro passo foi elaborar o Jun Fan Gung Fu (Kung Fu de Lee Jung Fan) que era uma mescla de Wing Chun com outros estilos de Artes marciais chinesas.

O livro editado por Linda Lee, "Tao of Jeet Kune Do", não era um tratado definitivo do Jeet Kune Do, mas apenas um apanhado de anotações, desenhos e reflexões de Bruce Lee feitos durante sua convalescença após a sua lesão nas costas em  1970.
Graças à influência de filósofos, como Jiddu Krishnamurti, ele teria desenvolvido o conceito de Jeet Kune Do (O Caminho da Intercepção dos Punhos). A filosofia que definia o Jeet Kune Do foi largamente difundida nos dois primeiros episódios de “Longstreet” (série de televisiva policial com James Franciscus, em meados de 1971) dos quais Lee participou graças ao convite do produtor Stirling Silliphant, seu amigo e discípulo, que lhe amparava há pouco menos de um ano depois dele ter se lesionado gravemente durante os treinos. Lee parecia estar completamente recuperado.

Bruce Lee em Longstreet com James Franciscus em meados de 1971, aparentemente recuperado de sua lesão nas costas. Foi uma excelente oportunidade dada a ele pelo seu amigo Stirling Silliphant para divulgar a filosofia do Jeet Kune Do.
Ainda em 1971, Bruce Lee retorna para Hong Kong esperançoso, mas se sentindo rejeitado por Hollywood. Aproveitando a fama conquistada e o reconhecimento pelo seu trabalho em O Besouro Verde como Kato, ele se oferece a produtores locais e inicia a carreira de ator de filmes de artes marciais que o consagraria mundialmente. O primeiro filme foi The Big Boss (O Dragão Chinês) lançado em outubro do mesmo ano. Quem assistiu ao filme no ano de seu lançamento certamente ficou admirado com a performance do “Pequeno Dragão” sem sequer imaginar que alguns meses antes ele estava praticamente condenado a não mais praticar artes marciais pelo resto de sua vida.

Bruce Lee em O Dragão Chinês (The Big Boss - 1971), surpreendendo com sua técnica e vigor físico.
Mas o incômodo nas costas nunca o deixou definitivamente, ele se viu obrigado a tomar um medicamento específico que amenizava a dor que regularmente o perseguia durante os sets de filmagens e, inclusive, diziam as más línguas que ele passou a usar a marijuana regularmente para amenizar seu sofrimento. Ninguém sabe ao certo o que ele sofria fisicamente para manter aquela imagem de imbatível lutador e consagrado “rei do Kung Fu”. Sua breve vida foi literalmente uma luta, e não temos a dimensão do esforço e do custo de tudo isso para ele, principalmente nos seus três últimos anos de vida, do dia 13 de agosto de 1970 a 20 de julho de 1973.
Uma mesma versão fantasiosa, endossada pela viúva e pela filha de Bruce, chegou às telas do cinema e da TV nos últimos anos contando uma versão dramática e fictícia sobre o que causou aquela lesão que Bruce Lee teria sofrido naquela manhã de agosto de 1970. No filme “Dragão: A História de Bruce Lee” (de 1993, com Jason Scott Lee), que foi baseado no livro de Linda Lee (“The Man Only I Knew”), ou mesmo na série de TV produzida em Hong Kong, “The Legend of Bruce Lee” (de 2008, com Danny Chan) com a produção executiva de Shannon Lee, ambas retrataram que o terrível ferimento teria sido ocasionado por conta do confronto em que Bruce Lee teria tido com um professor rival de Kung Fu estilo Shaolin do Norte, chamado Wong Jack Man. 

Bruce Lee com James Yimm Lee na época do provável confronto com Wong Jack Man


Na Versão para o cinema (1993), Bruce Lee enfrenta Wong Jack Man...

...e depois de ser declarado vencedor, é atacado covardemente pelas costas!

Na versão de "Dragão: A História de Bruce Lee" a recuperação é muito dramática
Segundo a versão fantasiosa, sob a imposição dos líderes mafiosos da Chinatown de San Francisco, Bruce só teria o direito de administrar aulas aos não chineses se vencesse em combate Wong Jack Man, que o teria desafiado oficialmente. O confronto se deu e Bruce teria vencido a luta de acordo com as testemunhas presentes, inclusive a própria Linda Lee. Mas na versão para o filme e também para a série de TV, após ser derrotado, Wong Jack Man teria golpeado Bruce Lee covardemente pelas costas causando-lhe a grave lesão.

Capa do filme em DVD de "Dragão: A História de Bruce Lee", uma versão fantasiosa com o endosso de Linda Lee

Capa do DVD da série de TV de Hong Kong recheada de elementos fictícios, The Legend of  Bruce Lee (Bruce Lee, a Lenda),  com o aval de Shannon Lee
Ora, é claro que não foi assim que ocorreu. Na verdade, Bruce Lee teria enfrentado Wong Jack Man (ambos com 24 anos) em dezembro de 1964, Linda estava presente e grávida de Brandon Lee (que nasceria dois meses após, em fevereiro de 1965). Outro que foi testemunha foi Jimmy Yimm Lee (falecido de câncer em 1969), um dos primeiros discípulo e parceiros de Bruce; além de William Chen, professor de Tai Chi Chuan e outras testemunhas do lado de Wong Jack Man. Esse confronto desgastante foi o que levou a Bruce Lee a questionar a real eficiência do Wing Chun e sua própria condição física. A lesão nas costas só ocorreria verdadeiramente seis anos após, em sua casa pela manhã, durante um exercício com pesos mal executado.


Bruce Lee em 1964, aos 24 anos, provavelmente na época do confronto com Wong Jack Man,
com seus alunos da academia  de Oakland

Wong Jack Man, o jovem lutador do estilo Shaolin do Norte que ousou desafiar
o impulsivo Bruce Lee na sua própria academia no ano de 1964

Wong Jack Man, muito técnico e estiloso, mas quem realmente venceu o confronto?
Deus é soberano sobre nossas vidas, quer creiamos ou não. Bruce Lee creu em si mesmo e na sua própria força para se recuperar fisicamente, mas é certo que sua vitória ocorreu com a permissão do nosso Senhor. Mas é inegável que Bruce Lee era um guerreiro, revolucionário e inovador e sem o seu surgimento, talvez as artes marciais não teriam evoluído ou não despertariam tanto interesse mundial como hoje em dia, 43 anos depois de sua morte. E como costumo frisar, a vida real do Pequeno Dragão era mais rica e intensa do que qualquer obra de ficção cinematográfica. Em um próximo post tratarei do polêmico confronto entre os jovens lutadores Bruce Lee e Wong Jack Man ocorrido no ano  de 1964 em Oakland, na Califórnia. Assunto controverso até os dias de hoje.

Eumário J. Teixeira.